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De carona com Procusto

1 de março de 2021 - Opinião

De carona com Procusto

O transporte público na capital é o alfaiate que, quando o terno não cabe, faz ajustes no cliente

Por Pedro Tavares Fernandes

Poucos personagens da mitologia grega têm uma simbologia tão útil para os tempos modernos do que Procusto, o infame anfitrião. 

No mito de Teseu, Procusto era um bandido que hospedava viajantes que transitavam nos arredores de Atenas. Contudo, em sua casa havia apenas duas camas: uma pequena e uma grande. Aos viajantes altos, Procusto oferecia a menor cama; aos baixos, a maior. Como a cama oferecida nunca tinha tamanho adequado, o anfitrião diligentemente corrigia o problema: dos altos, serrava os membros; dos baixos, esticava-os até caber no leito.

A narrativa sobre Procusto virou uma alegoria muito presente durante o século XX, tempo da intensa industrialização e dos produtos de tamanho único. Ainda que o mito trate de dois tamanhos de cama, serve perfeitamente para criticar modelos de negócio no qual o usuário deve se adaptar ao produto e não o contrário.

Felizmente, no século XXI percebemos a digitalização inundando todos os setores, trazendo a automatização das grandes bases de dados e, por consequência, permitindo grande personalização sobre produtos e serviços. Somando isso à revolução dos meios de pagamento e ampla conexão de internet (sobretudo móvel), a regra geral do mercado se tornou a realização, em parte, do sonho socialista: “[dar] para cada qual de acordo com sua necessidade” – ou vontade.

Na contramão disso está o transporte público de Florianópolis. Ainda que em 2013 o mundo já respirava uma atmosfera de profunda digitalização, a capital abriu licitação para o transporte coletivo no paradigma do “tamanho único”, repetindo o mesmo modelo adotado por décadas em vez de abrir o setor para inovação e modernização.

Alguns elementos do edital e, portanto, do contrato firmado em 2014 deixam isso bem claro:

  • Monopólio – em primeiro lugar, a concessão monopolística, que proíbe a atuação de outros agentes no transporte coletivo, vedando a concorrência e limitando a capacidade de inovação do setor;
  • Regulação – em segundo, a profunda subordinação do serviço à Lei Complementar Municipal nº 34 de 1999, que impõe ao transporte público um funcionamento aos moldes idealizados do século passado;
  • Subsídio – uma vez que essa forma traz profundas limitações para a concessionária também, em terceiro lugar vem o subsídio ao serviço para viabilizar o seu funcionamento. A título de ilustração, nos anos de 2018, 2019 e 2020, o repasse a título de subsídio foi de 53, 62 e 49 milhões de reais;
  • Duração – por fim, em quarto lugar, a longa duração da concessão, estabelecida em 20 anos (até 2034);

Dessa forma, Florianópolis, que tenta se mostrar para o mundo como a capital brasileira da inovação, entra em contradição e não consegue mostrar para o seu cidadão como a tecnologia lhe pode auxiliar em uma coisa tão simples, quanto o transporte cotidiano. 

Pior, o cidadão segue refém das mesmas ameaças de sempre, como as greves. Nem mesmo em tempos tão críticos – como a crise decorrente da pandemia – o florianopolitano é poupado das ameaças de greve.

Independentemente das razões do sindicato para interromper as atividades, não podemos perder de vista que a força de um único modal de transporte coletivo e de uma única categoria de profissionais decorre da adoção desse modelo de transporte de Procusto:

  • Se uma empresa é atingida pela greve, a cidade toda é atingida pela greve, pois a concessionária detém o monopólio, o que limita a atuação de ofertantes alternativos mesmo no tempo de paralisação;
  • Uma vez que o poder público subsidia a atividade para que funcione com regularidade, a greve pode se tornar um instrumento para pressionar tanto a concessionária quanto a própria prefeitura.

Diante desse contexto, não há uma saída fácil. É difícil vislumbrar uma solução consistente quanto à segurança jurídica sobre as parcerias público-privadas de longo prazo e, ao mesmo tempo, entregue resultados melhores aos cidadãos florianopolitanos. O poder público não pode mudar as regras do jogo quando bem entender, mas já ficou evidente que o modelo atual não atende a cidade em sua plenitude.

Para responder a esse problema de forma prudente e eficiente, precisamos deslocar o paradigma do transporte público. Mais especificamente, basta atualizá-lo, trazê-lo ao século XXI. 

Nos últimos cinco anos, vimos florescer na cidade o transporte por aplicativos (apesar da repressão da municipalidade). Vimos surgir e desaparecer os patinetes elétricos. Vimos a pandemia esvaziar as ruas, avenidas e rodovias da cidade. Em termos gerais: vimos as pessoas se adaptando às novas realidades, sempre em sintonia com as tendências de digitalização. 

Sendo assim, se desejamos responder ao problema do transporte público de forma prudente e eficiente, respeitando a segurança jurídica da concessão, mas permitindo aos cidadãos que tenha serviços cada vez melhores, o município precisa ser mais permissivo com a inventividade. Precisa ser receptivo às novas ideias e aos novos agentes. Precisa deixar ideias prosperar e ideias fracassar – e deixar que os cidadãos escolham a solução que mais lhes aprouver. 

Em síntese, o município precisa deixar de ser Procusto – e não mais amputar aqueles que cresceram ou esticar aqueles que deixaram de crescer.

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