Voto do ministro Luiz Fux – o primeiro por ele proferido no Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) após sua posse, no último dia 03 de março – definiu, na última quarta-feira (16), o deferimento de liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4264, ajuizada pela Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (AL-PE), para restabelecer a obrigatoriedade de convite pessoal dos ocupantes conhecidos de áreas de marinha, nos processos de demarcação de tais áreas.
Com a decisão, a Suprema Corte suspendeu, ex tunc (desde o início de sua vigência), a nova redação dada pela Lei 11.418/07 ao artigo 11 do Decreto-lei 9.760/46, impugnada na ADI. Esse texto havia suprimido a obrigatoriedade do convite pessoal aos interessados certos (conhecidos), nos procedimentos de demarcação de terrenos de marinha.
Com essa mudança do Decreto-lei 9.760/46, o Serviço de Patrimônio da União (SPU) havia sido autorizado a fazer a notificação apenas por edital, tanto dos interessados certos quanto dos incertos (desconhecidos). Uma vez notificados, eles tinham prazo de 60 dias para oferecer, para estudo, documentos e outros esclarecimentos concernentes aos terrenos compreendidos no trecho a ser demarcado.
Suspensão
A votação do pedido de liminar foi iniciada no dia 10 de fevereiro deste ano e suspensa na mesma data, quando cinco ministros pronunciaram-se pela concessão da liminar e quatro, dentre eles o relator, ministro Ricardo Lewandowski, por sua denegação.
A suspensão se deu em virtude da regra do artigo 10 da Lei 9.868/1999 (que dispõe sobre o julgamento das ADIs), que só admite a concessão de medida cautelar em tais ações com o voto da maioria absoluta dos integrantes da Suprema Corte, ou seja, seis dos seus onze ministros.
Ocorre que o ministro José Antonio Dias Toffoli se declarou impedido de participar do julgamento dessa ação, uma vez que chegou a atuar nela quando exercia o cargo de advogado-geral da União. Por outro lado, a Suprema Corte só contava, em fevereiro, com dez ministros, pois ainda não havia sido empossado o ministro Luiz Fux, na vaga deixada com a aposentadoria do ministro Eros Grau, em agosto do ano passado. Assim, não foi possível alcançar a maioria absoluta de seis votos.
Nova MP
Na sessão de hoje, antes que fosse retomado o julgamento da ação, o ministro Ricardo Lewandowski comunicou ao Plenário que o governo federal acabara de informar sua assessoria de que, sensibilizado com os argumentos contra a supressão da intimação pessoal dos interessados no processo de demarcação de área de marinha, deverá editar, até o fim desta semana, uma nova medida provisória, restabelecendo a obrigatoriedade do convite pessoal a eles.
Controvérsia
O tema discutido na ADI suscitou controvérsia. A divergência foi aberta pelo ministro Ayres Britto, favorável à obrigatoriedade de intimação dos ocupantes conhecidos de área de marinha nos processos de demarcação ou remarcação. Seu voto foi acompanhado pelos ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello, Marco Aurélio e pelo presidente da Corte, ministro Cezar Peluso.
O relator da ADI, ministro Ricardo Lewandowski, apoiando-se em pareceres da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Procuradoria-Geral da República (PGR), havia votado pela negativa da liminar. O principal argumento dos defensores da nova redação dada ao artigo 11 do DL 9.760/46, impugnado pela AL-PE, é que o Brasil tem 6.700 quilômetros de litoral e que 70% de sua população vivem em áreas litorâneas. Assim, seria impossível expedir convite pessoal a todos os ocupantes conhecidos de área de marinha ou adjacente. Até mesmo porque a linha de preamar (posição do mar em maré alta), envolvida na demarcação, pode deslocar-se ao longo dos anos, incluindo e excluindo espaços na área de marinha.
O voto do relator foi acompanhado pelos ministros Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie. Um dos argumentos desta corrente foi, também, o de que o artigo 11 do Decreto-lei 9.760/46 trata da fase preliminar da demarcação, pois os artigos 13 e 14 da mesma lei dariam aos interessados o direito ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal para defender seus interesses, em uma fase posterior, fato este contestado pela AL-PE.
Assim, não se trataria ainda, na fase abrangida pelo artigo 11, “de chamamento para exercer o direito do contraditório e da ampla defesa”. Por isso, essa corrente considerou “adequada e legítima” a intimação de todos os interessados por edital. No entender de seus defensores, o exercício do direito constitucional do contraditório e da ampla defesa se daria na segunda fase do processo demarcatório, ou seja, após a determinação da linha do preamar.
Divergência
A corrente divergente, entretanto, entendeu pela necessidade de chamamento, já na primeira fase do processo, dos interessados certos, que são conhecidos porque têm seu nome inscrito no Patrimônio da União. Isto porque pagam laudêmio (prêmio pela ocupação) e, no caso de transação, 5% de taxa sobre o valor de transferência da propriedade.
Além disso, no entendimento desta corrente, a primeira fase do processo de demarcação, prevista pela lei contestada, já leva à arrecadação dos imóveis situados em área de marinha, tornando necessária a notificação pessoal dos seus ocupantes, sob pena de afronta ao direito constitucional do contraditório e da ampla defesa, tanto em processos judiciais quanto administrativos.
Os partidários dessa corrente chamaram atenção, também, para o fato de muitas áreas de marinha serem ocupadas por pescadores, a maioria deles sem escolaridade, ou pessoas simples que não acompanham a publicação de editais e não teriam, portanto, condições de ser informados sobre o processo de demarcação.
Luiz Fux
Ao compartilhar essa posição, o ministro Luiz Fux observou que o convite genérico previsto no dispositivo impugnado ocorre em uma das mais importantes fases do processo de demarcação ou remarcação das áreas de marinha (a primeira) e, portanto, exige o exercício do direito do contraditório e da ampla defesa.
Ele observou que o Decreto 9.760/2007, que dispõe sobre os bens imóveis da União e definiu os terrenos de marinha como sendo os situados “em uma profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar médio de 1831”, conduziu a dados imprecisos que levaram à necessidade da remarcação.
Segundo ele, o limite da metragem horizontal do preamar médio, que data de 1831, vem sofrendo modificações em virtude da movimentação das marés e, portanto, uma remarcação pode implicar a perda parcial ou total de propriedade dos atuais ocupantes, ou transformá-los em meros ocupantes. Daí a necessidade de sua citação pessoal para exercer seu direito de defesa.
Ele contestou o argumento de que a expedição de convite pessoal a todos os ocupantes de tais áreas implicaria demora na decisão. “Entre celeridade e o devido processo legal, há que preponderar este”, observou.
Ainda em seu voto, o ministro disse que o conceito moderno de administração pública deve envolver a participação dos administrados, respeitando seu direito de cidadania e observando os princípios constitucionais da legalidade e da democracia.
Ele lembrou que a Constituição Federal de 1988 assegura o direito ao devido processo legal. Assim, as duas partes devem ser ouvidas no processo judicial e administrativo. E esse direito, no seu entender, também se aplica ao caso em discussão, impondo a convocação dos ocupantes conhecidos de área de marinha no processo de remarcação. Isso porque, conforme observou, a intimação dos interessados conhecidos por edital, sem o devido direito de defesa, coloca o interessado em situação de inferioridade em relação à Administração Pública, justamente quando estão em jogo os seus próprios bens.
Neste contexto, ele se reportou à CF, que, em seu artigo 5º, inciso LV, dispõe: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Disposição semelhante está inscrita também, conforme lembrou, na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Segundo o diretor de turismo da Associação Comercial e Industrial de Florianópolis (ACIF), Ernesto São Thiago, que colabora ativamente no planejamento e regulação do turismo náutico e marítimo brasileiro, a decisão do STF vem trazer segurança jurídica aos investimentos no waterfront, notadamente resorts de praia e empreendimentos como marinas e terminais de cruzeiros. “O investidor agora não está mais sob o risco de ser expropriado do imóvel sem direito à defesa por conta de um edital ao qual não teve acesso, ou de pagar por algo que, agora até prova em contrário, de fato não pertence à União, que, portanto, não pode cobrar pelo uso, ocupação ou domínio útil”, comenta.
Com informações do Supremo Tribunal Federal (STF).